Eis uma excelente análise do filme Coringa (2019). O autor é o prof. Carlos Eduardo F. Martins, graduado em Letras Português-Inglês e pós-graduado em Especialização de Ensino de Língua Inglesa (Ufes).
Eu assisti ao filme “Coringa” no sábado passado e somente
agora, livre de muito “contágio”, eu consegui confeccionar uma análise não
muito impregnada de paixão e hipersensibilidade. Devo começar declarando que
após a magistral interpretação desse personagem, feita pelo falecido autor
australiano Heath Ledger, eu jamais atinei que qualquer outro ator poderia ter
a coragem de reviver esse papel, pois seria arriscado demais cair no ridículo,
em uma caricatura inferior ao seu antecedente, por assim dizer. Ledger fora
aclamado à época e com totais méritos! Até então aquela era a melhor
interpretação já feita desse vilão icônico, em que se pese que o ator Jack
Nicholson também é um monstro na arte da interpretação e já havia feito um
belíssimo trabalho na pele do Coringa. No entanto, Joaquin Phoenix, munido de
muita ousadia, verve artística e técnica, e com menos vinte e quatro quilos
para o que a tarefa exigia para a interpretação corporal (pasmem!), aceitou a
ingrata tarefa. Phoenix, deveras, possuía gabarito para a realização desse
empreendimento. É um dos melhores atores contemporâneos, tendo já recebido um
Grammy, um Globo de Ouro e três indicações ao Oscar, por filmes como
“Gladiador”, “Johnny & June”, “Ela”. Bem, posso afirmar categoricamente que
Joaquin Phoenix não só teve êxito em seu feito, como conseguiu realizar uma das
maiores atuações do cinema desde a sua gênese (e, não, não estou exagerando, e,
sob minha visão, o Oscar de melhor ator já tem dono!).
Arthur Fleck, que vive às margens da sociedade entre a
apatia e a crueldade que lhe é imposta diariamente na cidade fragilizada e
corrompida de Gotham, ganha a vida como palhaço de rua, mas sonha em ser um
comediante de “stand-up”. Quando este se dá conta que seu sonho jamais será
realizado, quer seja devido ao seu distúrbio mental, quer seja devido à
crueldade e preconceitos cíclicos dos que o cercam, Arthur faz uma escolha
involuntária que traz uma reação em cadeia de eventos incontroláveis em uma
escalada de violência generalizada que mudará não só a sua vida, mas de toda a
sociedade na qual ele está inserido. Eis então o surgimento de nosso icônico
Coringa.
Há que se deixar claro que o personagem do Coringa não é
herói nem anti-herói, é um vilão e é também um pária social, um infeliz
portador de transtorno mental, com uma vida miserável e uma risada patológica
que lhe tolhem a liberdade no trânsito social, impossibilitando, assim, a
realização de seu sonho. Ademais Arthur é paulatinamente massacrado física e
psicologicamente pela sociedade em geral, o que amplifica seus demônios e seus
distúrbios. Veja bem: amplifica, mas não cria! Leve-se em conta também que ele
não tem o tratamento adequado para a sua patologia. Convém também esclarecer
que a vilania do coringa não é, sob nenhuma forma, inviabilizada pela sua
condição mental, ou seja, uma coisa não anula a outra, portanto, é um grande
absurdo sequer pensar que exista qualquer apologia à violência! Ainda que assim
não fosse, invoco o genial Oscar Wilde, que, em um de seus muitos axiomas
perspicazes, foi taxativo quanto à crítica que se deve ter acerca da arte: “Não
existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos. E eis
tudo”. Sendo Oscar Wilde um esteta, ele não somente possuía tal premissa para
livros, mas para todos os tipos de obras artísticas. Deve-se julgar, portanto,
a qualidade da obra e não seu conteúdo!
Essa película é um drama denso, quase um estudo de caso, que
também flutua entre o horror e o terror psicológico (se você espera ver um
filme carnavalesco de super-heróis, com explosões e cores vivas eclodindo sob
CGIs, esqueça!) e fora confeccionado para incomodar incessantemente durante
toda a projeção, e consegue esse intuito com maestria! Tudo, exatamente tudo
conspira para esse fim: a sonoplastia com ruídos e sons perturbadores; os
filtros de cores frias, ora verde, ora azul, além de um belíssimo jogo de luzes
e sombras, como imensos holofotes que iluminam e chamam atenção para o
picadeiro da vida, onde a ação é encenada; planos longos de câmera (sem
cortes), às vezes, desestabilizada, ora contemplando o personagem principal em
seus devaneios, ora evidenciando, em tomadas fechadas, as suas idiossincrasias
de forma enfática para fins dramáticos; alegorias poderosas que aludem a barreiras,
aos obstáculos difíceis de serem transpostos, tais como uma escadaria imensa,
grades que segregam, elevador defeituoso, barreira policial, multidão
revoltada, um transtorno mental incurável etc; ambientes fechados, sombrios e
opressores e uma interpretação fenomenal que perturba, instiga e sufoca o
espectador em cada frame da película (Phoenix está em todas as cenas!).
Em primeiro lugar, com noventa e três milhões e meio de
dólares arrecadados no mundo todo até aqui, obtendo dez vezes mais arrecadação
no “TOP BOX OFFICE” que o segundo colocado, “Abominável”, recheado de assuntos
pertinentes e polêmicos (até por isso não estranhe se o filme for boicotado no
Oscar...), tais como corrupção, sensacionalismo e irresponsabilidade mediáticos
e suas consequências, violência urbana, politicagem, irresponsabilidade e
abandono (falta de política) governamentais, transtornos mentais e de
personalidade, seus possíveis tratamentos, negligência, descaso e preconceito,
um roteiro criativo e assertivo, uma ambientação primorosa, uma direção afiada e
contundente, uma fotografia perfeita, sonoplastia e músicas adequadas e
sublimes (aplicar “Send in the clowns” no filme é uma sacada e tanto!) e,
ratifico, uma interpretação poderosa e fenomenal de Joaquin Phoenix, o Coringa
é aquele tipo de filme que continua sendo projetado em sua mente muito tempo
depois que as luzes do cinema se apagam.