Quantas vezes já ouvimos alguém
proferir a frase: “Eu não gosto de poesia” ou “Eu não gosto de literatura”. A
estas pessoas, eu fraternalmente dedico esta postagem.
Já comentei sobre a necessidade inata da arte. O fato de haver pinturas pré-históricas em cavernas mostra
que a necessidade do homem em se expressar é mais antiga que a preocupação em
construir casas. Ou seja, a pintura é mais antiga que a engenharia civil. De
fato, a pintura é mais antiga até que a matemática, a medicina e o direito.
Também já comentei que arte é a palavra que designa
habilidade, técnica (techne, em
grego), ou seja, a capacidade que o homem tem de criar algo artificial, algo que imite (mimesis, em grego) a natureza. Nesta definição, toda a ação humana
para modificar o mundo natural seria classificada como arte. E o que é poesia?
Assim como a física (physis) estuda
os fenômenos naturais, a poesia (do grego: póiesis = fabricação) estuda as ações fabricadas pelos
homens. A alquimia tradicional seria uma das formas de unir a physis e a póiesis. A antiga filosofia (philosophia
= amor à sabedoria) era a metodologia de organização do
pensamento e também a união de toda ciência
(sabedoria) fabricada até então: matemática, química, retórica, política,
medicina etc. Tales de Mileto, Pitágoras, Demócrito, Sócrates e Hipócrates são
alguns filósofos cujos trabalhos ilustram isso.
E onde entra a literatura?
Como arte da escrita (do latim: littera = letra),
abarcaria toda a técnica (techne) da argumentação (retórica para os gregos, oratória
para os romanos) e a estética da
produção textual escrita e oral. Os estudos literários englobam a palavra em
todas as suas formas e gêneros:
Lírica – a palavra cantada, a
partir das emoções do eu subjetivo;
Narrativa – a palavra narrada/falada,
a partir das percepções do narrador;
Dramática – a palavra
encenada/representada, a partir das percepções de várias personagens (personalidades) simultaneamente.
Ou seja, a literatura desde a sua
concepção esteve intrinsecamente ligada às outras artes:
a música (na lírica), o teatro (no drama) e mais atualmente o cinema (haja
vista a variedade de novelas, romances, histórias épicas e peças dramáticas adaptadas para a tela). Não obstante, é no roteiro original que o cinema se apresenta como novidade, criando um novo texto e um novo gênero literário.
O cinema é a fotografia em
movimento e também a palavra apresentada a partir do foco da câmera (esta
funcionando como o narrador). É por excelência a arte (techne) do século XX e a fusão de várias artes, dentre elas: a
pintura (iluminação, maquiagem, efeitos especiais e pós-produção), a literatura
(o roteiro, a trama), o teatro (a representação dos atores) e a música (a
trilha sonora como parte importante da narrativa dramática, análoga ao coro dos teatros gregos). Se há
ainda alguma dúvida de que o cinema é um gênero a ser contemplado pelos
estudos
literários, basta lembrar que alguns dos fundadores da semiologia/semiótica
(hoje muito usada para analisar o cinema) eram críticos literários
(exemplo: Roland Barthes e Umberto Ecco).
Tendo explanado os fatos acima, retomo
a questão inicial desta postagem. Como eu diria hoje a alguém que ela gosta (e
necessita) da poesia/arte/literatura em sua vida, mesmo que ela não conheça o
real significado desses conceitos? Primeiro eu evitaria adentrar em definições
teóricas (como fiz acima) e então montaria o seguinte questionário (como fiz
abaixo) com comentários feitos a cada resposta obtida:
Você gosta de filmes/música?
Se sim, então você gosta de
poesia/arte/literatura.
Você imagina a sua vida sem filme/música?
Se não, logo, mesmo que você não
entenda a razão, você sente a importância e a necessidade da
poesia/arte/literatura em sua vida.
Esses filmes e músicas a emocionam? Eles lhe fazem rir ou chorar?
Se sim, sua relação com poesia/arte/literatura
é muito forte, sensível, pessoal, consequentemente demonstra que essa
necessidade é inata.
Os filmes e músicas de que você gosta lhe acrescentam reflexões?
Se sim, você tem alguma
consciência de que a arte não é apenas entretenimento, de que ela é, portanto,
uma reflexão importante sobre o mundo, a natureza das coisas, o ser humano, a
sociedade e a vida.
Conclusão:
Se você gosta de filmes e músicas
tanto quanto me diz, você ama a arte, mas não aprendeu a ter gosto pela leitura
e pelo estudo dela. O estudioso de Letras especialista em estudos literários aprende a analisar criticamente as ideologias por trás de cada texto, deixando de ser
uma vítima inconsciente do conhecimento e passando a ser um produtor consciente,
da mesma forma que o artista deixa de ser uma vítima da sociedade e passa a ser
um formador de opinião.
Feito isso, tenho por finalizado
o questionário e a argumentação, comprovando meu ponto de vista e convencendo o
meu interlocutor da necessidade inata e importância imperativa das artes.
Retomo a partir de agora a reflexão teórica juntamente com os leitores deste
blog, e ao fazê-lo, resgato uma postagem anterior para afirmar o seguinte: Não
há comunicação
possível sem catacrese, metáfora e outras figuras de linguagem. Você, estudante
de Letras, pode analisar qualquer texto oral ou escrito e notar que todos eles
fazem uso dessas ferramentas linguísticas e que não seria possível haver a
comunicação de ideias sem essas ferramentas. Este fato é outro indicativo da
importância imprescindível dos estudos literários e linguísticos.
Filosofia e literatura (ou vice-versa)
Isto daria pano para uma outra
postagem (das longas), mas não sei se farei. Por um lado, acho óbvio demais
dizer o que vou dizer, por outro, acho inútil argumentar com quem ainda insiste
numa separação radical entre essas duas disciplinas, portanto, vou diretamente à apresentação dos fatos em três pontos de vista diferentes.
1- Filosofia e literatura são basicamente a mesma coisa
A filosofia é a reunião de vários
saberes, a literatura também. A filosofia é o amor pelo conhecimento e este é
produzido pela arte da escrita, a literatura, consequentemente, uma coisa não
existe sem a outra. Alguns filósofos (como Jacques Derrida) diziam que a
filosofia pode ser lida como literatura e que esta pode ser lida como
filosofia. Portanto, a separação entre
essas duas disciplinas seria meramente didática. Ou ainda, a separação seria
forçosa e sem critérios, porque não há.
2- Literatura é um ramo da filosofia
A filosofia foi pioneira na
produção da matemática, das ciências naturais, da lógica, da história, da
política e também a arte da argumentação. A literatura seria a parte da
filosofia que se ocupa do discurso verbal, ou seja, de todas as ciências
mencionadas acima, exceto a matemática e as ciências naturais (apesar de poder
também reportar-se a elas, e isso ocorre frequentemente).
Poema de E. M. de Melo e Castro |
Assim sendo, quando Platão estudava os números pitagóricos, ele estava fazendo matemática, quando Platão escrevia diálogos, ele estava fazendo literatura. Em ambos os casos, ele era um filósofo.
3- Filosofia é um ramo da literatura
Jorge Luís Borges e vários outros
diziam sarcasticamente que a filosofia seria um ramo da literatura fantástica.
Conclusão:
Particularmente, acredito nos
três pontos de vista. Também acredito na separação entre filosofia e
literatura, mas vejo isto como uma idealização do Romantismo, algo muito atual
se considerarmos toda a história. No meu entendimento, a filosofia muitas vezes
se apresenta como uma teoria, enquanto a literatura como uma alegoria. Isto é, a
filosofia idealiza as práticas sociais, a literatura mostra essas práticas. Mas
não há uma regra, tanto a literatura como a filosofia podem fazer os dois e
ambas podem recorrer à ficção, haja vista os inúmeros
exemplos de literatura verídica e filosofia fictícia, contradizendo o
senso-comum. Vejo o gênero textual como a única diferenciação objetiva entre
filosofia e literatura. A literatura como concebida hoje se manifesta em vários
gêneros: dissertação, lírica, narrativa e drama (e sempre há uma mescla entre
esses gêneros). A filosofia como concebida hoje se apresenta como uma
dissertação.
Com isso, finalizo a postagem
esperando ter sido claro em minha reflexão e desejando que o leitor ao
analisá-las faça-o com cuidado.
Por fim, deixo os seguintes
pensamentos (o terceiro é de minha autoria).
Jacques Lacan pronunciou a
seguinte frase:
“O artista precede o
psicanalista”.
– Com isso, o psicanalista queria
dizer que a Arte (principalmente a literatura) já tinha antevisto muitas das
descobertas que a psicanálise faria mais tarde como ciência.
Bertolt Brecht já disse que:
“Se não morre aquele que escreve
um livro ou planta uma árvore, com mais razão não morre o educador, que semeia
vida e escreve na alma”.
“O conhecimento provém, em parte,
da experiência direta, empírica e real. Também é formado em parte pela
linguagem, isto é, a criação de rótulos para analisar, traduzir e descrever o
universo. A sabedoria (se é possível alcançá-la) é a união crítica e metódica
dessas partes”.