sábado, 21 de dezembro de 2019

Análise do filme "Coringa"

Eis uma excelente análise do filme Coringa (2019). O autor é o prof. Carlos Eduardo F. Martins, graduado em Letras Português-Inglês e pós-graduado em Especialização de Ensino de Língua Inglesa (Ufes).


Eu assisti ao filme “Coringa” no sábado passado e somente agora, livre de muito “contágio”, eu consegui confeccionar uma análise não muito impregnada de paixão e hipersensibilidade. Devo começar declarando que após a magistral interpretação desse personagem, feita pelo falecido autor australiano Heath Ledger, eu jamais atinei que qualquer outro ator poderia ter a coragem de reviver esse papel, pois seria arriscado demais cair no ridículo, em uma caricatura inferior ao seu antecedente, por assim dizer. Ledger fora aclamado à época e com totais méritos! Até então aquela era a melhor interpretação já feita desse vilão icônico, em que se pese que o ator Jack Nicholson também é um monstro na arte da interpretação e já havia feito um belíssimo trabalho na pele do Coringa. No entanto, Joaquin Phoenix, munido de muita ousadia, verve artística e técnica, e com menos vinte e quatro quilos para o que a tarefa exigia para a interpretação corporal (pasmem!), aceitou a ingrata tarefa. Phoenix, deveras, possuía gabarito para a realização desse empreendimento. É um dos melhores atores contemporâneos, tendo já recebido um Grammy, um Globo de Ouro e três indicações ao Oscar, por filmes como “Gladiador”, “Johnny & June”, “Ela”. Bem, posso afirmar categoricamente que Joaquin Phoenix não só teve êxito em seu feito, como conseguiu realizar uma das maiores atuações do cinema desde a sua gênese (e, não, não estou exagerando, e, sob minha visão, o Oscar de melhor ator já tem dono!).

Arthur Fleck, que vive às margens da sociedade entre a apatia e a crueldade que lhe é imposta diariamente na cidade fragilizada e corrompida de Gotham, ganha a vida como palhaço de rua, mas sonha em ser um comediante de “stand-up”. Quando este se dá conta que seu sonho jamais será realizado, quer seja devido ao seu distúrbio mental, quer seja devido à crueldade e preconceitos cíclicos dos que o cercam, Arthur faz uma escolha involuntária que traz uma reação em cadeia de eventos incontroláveis em uma escalada de violência generalizada que mudará não só a sua vida, mas de toda a sociedade na qual ele está inserido. Eis então o surgimento de nosso icônico Coringa.

Há que se deixar claro que o personagem do Coringa não é herói nem anti-herói, é um vilão e é também um pária social, um infeliz portador de transtorno mental, com uma vida miserável e uma risada patológica que lhe tolhem a liberdade no trânsito social, impossibilitando, assim, a realização de seu sonho. Ademais Arthur é paulatinamente massacrado física e psicologicamente pela sociedade em geral, o que amplifica seus demônios e seus distúrbios. Veja bem: amplifica, mas não cria! Leve-se em conta também que ele não tem o tratamento adequado para a sua patologia. Convém também esclarecer que a vilania do coringa não é, sob nenhuma forma, inviabilizada pela sua condição mental, ou seja, uma coisa não anula a outra, portanto, é um grande absurdo sequer pensar que exista qualquer apologia à violência! Ainda que assim não fosse, invoco o genial Oscar Wilde, que, em um de seus muitos axiomas perspicazes, foi taxativo quanto à crítica que se deve ter acerca da arte: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos. E eis tudo”. Sendo Oscar Wilde um esteta, ele não somente possuía tal premissa para livros, mas para todos os tipos de obras artísticas. Deve-se julgar, portanto, a qualidade da obra e não seu conteúdo!

Essa película é um drama denso, quase um estudo de caso, que também flutua entre o horror e o terror psicológico (se você espera ver um filme carnavalesco de super-heróis, com explosões e cores vivas eclodindo sob CGIs, esqueça!) e fora confeccionado para incomodar incessantemente durante toda a projeção, e consegue esse intuito com maestria! Tudo, exatamente tudo conspira para esse fim: a sonoplastia com ruídos e sons perturbadores; os filtros de cores frias, ora verde, ora azul, além de um belíssimo jogo de luzes e sombras, como imensos holofotes que iluminam e chamam atenção para o picadeiro da vida, onde a ação é encenada; planos longos de câmera (sem cortes), às vezes, desestabilizada, ora contemplando o personagem principal em seus devaneios, ora evidenciando, em tomadas fechadas, as suas idiossincrasias de forma enfática para fins dramáticos; alegorias poderosas que aludem a barreiras, aos obstáculos difíceis de serem transpostos, tais como uma escadaria imensa, grades que segregam, elevador defeituoso, barreira policial, multidão revoltada, um transtorno mental incurável etc; ambientes fechados, sombrios e opressores e uma interpretação fenomenal que perturba, instiga e sufoca o espectador em cada frame da película (Phoenix está em todas as cenas!).

Em primeiro lugar, com noventa e três milhões e meio de dólares arrecadados no mundo todo até aqui, obtendo dez vezes mais arrecadação no “TOP BOX OFFICE” que o segundo colocado, “Abominável”, recheado de assuntos pertinentes e polêmicos (até por isso não estranhe se o filme for boicotado no Oscar...), tais como corrupção, sensacionalismo e irresponsabilidade mediáticos e suas consequências, violência urbana, politicagem, irresponsabilidade e abandono (falta de política) governamentais, transtornos mentais e de personalidade, seus possíveis tratamentos, negligência, descaso e preconceito, um roteiro criativo e assertivo, uma ambientação primorosa, uma direção afiada e contundente, uma fotografia perfeita, sonoplastia e músicas adequadas e sublimes (aplicar “Send in the clowns” no filme é uma sacada e tanto!) e, ratifico, uma interpretação poderosa e fenomenal de Joaquin Phoenix, o Coringa é aquele tipo de filme que continua sendo projetado em sua mente muito tempo depois que as luzes do cinema se apagam.




sábado, 14 de dezembro de 2019

Ancestrais

Meus ancestrais ameríndios, lusitanos, itálicos, helenos, semitas querem conhecer intimamente os seus ancestrais bérberes, celtas, escandinavos, germânicos, núbios, fenícios, persas, arianos, nipônicos...

Por que haveríamos de deixar as palavras hodiernas trucidar o desejo e o empirismo, intervindo no categórico poder dos nossos gametas?

Sejamos contemplativos e silenciosos, sem palavras, sem rótulos; iletrados, se preferir; como dois virgens da Idade do Fogo

Deixemos nossos corpos entrelaçados no Kama Sutra, sem pensarmos; como hedonistas vivendo seus últimos dias em Pompeia.

Porque o rígido desejo de nossos corpos úmidos, a qualquer momento, pode se tornar uma rigidez indesejável, seca, sem gozo, sem alma.


Iulio Ypiranga

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Simbologia em O irlandês



O irlandês é um um filme produzido pela Netflix e lançado em 2019; estrelado por Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci; com direção de Martin Scorsese. O roteiro, escrito a partir do livro I heard you paint houses, é baseado numa história real.

Segue abaixo minha análise sobre aspectos simbólicos do filme.



Alerta de spoiler: leia após assistir ao filme. 




PINTAR CASAS – Quando Jimmy, ao telefone com Frank, diz: "Eu soube que você pinta casas" ele está usando uma linguagem em código, para o caso de o telefone estar grampeado. "Pintar casas" faz referência aos respingos vermelhos de sangue, que ficavam nas paredes das casas após um assassinato por arma de fogo. Quando Jimmy diz isso ao Frank, ele está querendo dizer: "Eu soube que você mata pessoas". A primeira função de Frank ao aceitar trabalhar para Jimmy seria a de guarda-costas. E isso incluía serviços sujos (assassinatos).


TRAÇAR A ROTA NO MAPA – Em dois momentos do filme, a narrativa mostra Frank traçando a rota que seguiriam de carro até o local do casamento. A ênfase que se dá a isso tem uma explicação simples. O mapa e o fato de estarem em um casamento eram os álibis de que precisavam para não estarem conectados ao local onde Jimmy Hoffa foi visto pela última vez.


ÓCULOS ESCUROS – Chegando ao aeroporto, quando ainda estão no carro, Russell Bufalino pede a Frank que lhe dê os seus óculos escuros. Frank os retira e entrega ao amigo, antes de subir no avião. Ao retornar da viagem, Frank entra no carro e Russel devolve os óculos dele. Talvez isso seja um sinal de que Frank precisaria mais dos óculos após cumprir a tarefa que lhe fora imposta, pois, após essa tarefa, ele estaria de luto.


PEIXE NO CARRO – O filho adotivo de Jimmy Hoffa transportou um peixe em seu carro, uma encomenda que ele ficara incumbido, e a fez sem ao menos saber que peixe era. Ele não perguntou, nem se interessou, simplesmente fez o que deveria fazer: levar o peixe. Num momento tenso da trama, os diálogos sobre esse fato trazem um tom meio cômico à cena, mas também são uma metáfora de como as coisas funcionam na máfia. Ou seja, você não faz perguntas, não se incomoda, apenas faz o que lhe mandaram fazer, mesmo que seja a contragosto. E isso é a definição de como Frank se sentia em relação à ordem que estava prestes a cumprir.


“É O QUE É” – Uma fala que aparece em mais de um momento do filme. Na cena em que Frank, a serviço da máfia, diz a Jimmy Hoffa: "É o que é" ele está, a contragosto, entregando um recado definitivo da máfia ao ex-líder sindical. 

"É o que é" equivale a dizer, de modo gentil, que: "Seu tempo já passou, você já era, esqueça isso, conforme-se com o que tem." Assim, a máfia estava dizendo a Jimmy Hoffa que seu tempo como presidente do sindicato mais poderoso da América havia acabado e que isso não tinha volta e não era para ele insistir, essa discussão se encerrava ali.


Simbolicamente, essa sentença de caráter irremediável também faz referência ao envelhecimento, à passagem do tempo, à efemeridade – uma questão central nesta narrativa. 


CAIXÃO VERDE – De todos os caixões que Frank vê na loja, ele escolhe para si aquele de cor verde. Talvez por ser uma cor que representa, simbolicamente, a Irlanda. Ou ainda, o faz lembrar do exército. Frank admitiu que viveu momentos de medo da morte enquanto estava na guerra. O verde, portanto, pode representar a morte para ele, mas agora num momento em que ele a deseja, pois está velho, completamente só num asilo, sem contato com sua família e sem amigos.


PORTA MEIO ABERTA – Na última cena, após suas orações, Frank pede um favor ao padre, antes que este saia do quarto e deixe Frank sozinho. Ele pede que o padre deixe a porta meio aberta, ou seja, que não a feche completamente. Frank tinha esperanças de rever suas filhas, receber o perdão delas e reatar laços com elas. Frank também ansiava pela morte, já que, sem suas filhas por perto, sua vida se tornara solitária e sem sentido. Portanto, deixar a porta meio aberta simboliza uma esperança  de receber a visita de suas filhas ou a visita da morte, pondo fim à sua dor.





Frank Sheeran - interpretado por Robert De Niro












Joe Pesci interpretando Russell Bufalino 

Al Pacino interpretando Jimmy Hoffa






terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Dica de leitura: Nefer, o Silencioso







A Pedra da Luz - Nefer, o Silencioso.

Romance escrito pelo parisiense Christian Jacq, doutor em estudos egípcios.










A trama se passa durante o governo de Ramsés, o Grande. Uma confraria de artesãos e sacerdotisas em Tebas vive como uma comunidade isolada de iniciados que guardam secretamente seus conhecimentos. Usando de sua arte, esses artesãos têm o trabalho de construir, conservar e restaurar as moradas eternas dos faraós e rainhas do Egito.

A obra descreve em detalhes a vida nesse período do Egito Antigo, bem como os trabalhos feitos pelos escultores, desenhistas, pintores... e os ritos místicos que envolvem cada ação realizada por essa confraria.

Contudo, há uma conspiração se armando entre figuras poderosas de Tebas. Algumas delas motivadas por ganância, outras querendo modernizar o Egito e acabar com certas tradições, ou ainda por mera vingança. Esses detentores de altos cargos na sociedade tebana se reúnem às escuras com o objetivo de destruir a confraria do Lugar da Verdade¹, acabar com seus privilégios e descobrir seus segredos.

O enredo têm momentos de luta, amor e aventura. Algumas personagens recebem mais atenção e suas histórias individuais despertam a curiosidade do leitor. 

Para mim, a personagem mais cativante nessa obra é o jovem Paneb, o Ardoroso. Sua trajetória de vida em busca do sonho de se tornar desenhista e pintor, passando por várias provações, é um exemplo envolvente de perseverança!

É uma leitura simples, fácil de ser digerida, mas muito inteligente e prazerosa. Não é cansativa nem chata. Muito pelo contrário! Se você se interessa pelo Antigo Egito, por história antiga e assuntos afins, este é um romance que nos coloca no cotidiano dessa magnífica civilização.



¹ Lugar da Verdade, em egípcio antigo set Maât, era o local onde ficava a confraria de artesãos. O nome era em honra à deusa Maât que simboliza a verdade, a justiça e a retidão.


Detalhes técnicos:
462 páginas;
Bertand Brasil, 2011;
Tradução: Maria Alice Araripe de Sampaio Doria.




ADENDO (03/01/2020)

Nefer foi enterrado em Tebas, tumba 250 (JACQ, 2011, p. 119)

Paneb é citado no Papiro Salt 124 (BM 10055), datado da XX dinastia. Artesão residente do Lugar da Verdade, chefe de equipe do lado esquerdo, casado com Uabet.

No papiro citado acima, um tio adotivo faz várias queixas sobre Paneb, e as envia, em forma de carta,  ao vizir de Tebas. Porém, segundo interpretações de estudiosos sobre o conteúdo exaltado da carta, as acusações dão margem a muitas dúvidas, com muitos traços de parcialidade. Uma fonte diz que "Apesar de boa caligrafia, o papiro tem uma gramática ruim".

O papiro Salt 124 (BM 10055) está guardado no arquivo do Museu Britânico.



Papiro Salt 124 (BM 10055) - British Museum



















A coluna monolítica (pedra comemorativa) de Paneb























Fontes

O caso Paneb:
https://journals.openedition.org/cultura/1535


Museu Britânico:
https://research.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=100909&partId=1 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O que é ANALISAR UM POEMA?

É, basicamente, parafrasear. Ou seja, explicar o poema numa linguagem própria, porém formal e objetiva.

Isso retira a riqueza da linguagem poética?
- Sim, mas é um exercício necessário à compreensão dos textos poéticos, principalmente na fase inicial dos estudos literários. 

Digo "principalmente", mas não para por aí, pois a análise de poemas existirá também em nível de mestrado e doutorado. 

Analisar um poema também significa reconhecer intertextualidade (se houver), figuras de linguagem, aspectos fonéticos, aspectos visuais etc.

Obs: quando um aluno usa a análise de outra pessoa em sua própria análise, ele deve citar o autor que está guiando a sua compreensão do texto. A análise (paráfrase) de um terceiro é um texto, e jamais deve aparecer como plágio no trabalho de alguém.

Obs 2: A tradução de um texto é uma co-autoria, uma paráfrase interlingual. Quando um aluno utiliza de um texto traduzido, ele deve citar o autor original e também o tradutor.

Quando o aluno lê a versão original, não uma tradução, ele pode utilizar a expressão "tradução nossa" para indicar que ele mesmo está parafraseando em português (isto é, traduzindo) um texto que originalmente foi escrito em outro idioma.

Em resumo: se a análise (paráfrase intralingual) ou a tradução (paráfrase interlingual) não for sua, você tem que citar o autor da análise ou da tradução. Plágio é crime, e pior, é muito antiético!

Análises parecidas existem, mas apenas quando são análises corretas, ou seja, quando dois ou mais estudantes compreenderam a mensagem do texto. Mas quando duas análises erram igualmente a interpretação de uma mesma palavra, termo ou verso(s), é difícil ser coincidência. Neste caso, a mais recente será considerada plágio.

Em tempos de internet, o plágio infelizmente se tornou mais numeroso, porém, mais fácil de identificar. As fontes originais estão todas aí para serem consultadas num simples click.

A análise de poemas é um exercício trabalhoso, mas também prazeroso e importantíssimo. Interfere decisivamente no nosso crescimento como ser individual e também como ser coletivo, humano, pertencente a uma espécie intrinsecamente dependente de suas memórias, sua História, legado, e de algumas tradições que mantêm a nossa existência. Reflete diretamente no modo como percebemos o mundo, no que pensamos, no como pensamos, e como refletimos sobre nós mesmos.

A análise de textos literários (poemas, narrativas e teatro) é o último e mais alto nível de labor no processo de letramento. Sem isso, o letramento não se completa. Sem isso, a humanidade perderia suas memórias, História, legado e algumas tradições essenciais para preservar a vida como a conhecemos. 

Se a sociedade tem problemas hoje, tente imaginá-la sem letramento, sem séculos de conhecimento armazenado, sem experiências a compartilhar, sem caminhos a nos guiar, sem estímulos que nos façam ponderar entre dilemas, sem algo que nos una como irmãos.

Mas com todo o conhecimento literário, filosófico e científico acumulados por séculos, podemos aproveitar essas experiências e tentar, se possível, melhorar a vida.


Leve em consideração ao analisar um texto:
- Seu contexto histórico;
- O estilo do autor e sua biografia;
- O que o autor diz em seu texto, e não o que você gostaria que ele dissesse;
- E cuidado com a superinterpretação.

Obs: algumas teorias literárias preferem desconsiderar o contexto histórico e biográfico do autor, e isso tem um fundamento, mas não vem ao caso aqui. Para compreender a mensagem que um autor quis transmitir com seu texto, devemos considerar sua intenção, seu público alvo e tudo o que poderia influenciar sua escrita, incluindo o seu contexto histórico e o contexto de sua vida pessoal.