sexta-feira, 29 de abril de 2016

Suffer little children

Tradução: “Deixai as criancinhas”. O título dessa canção dos Smiths faz referência à Bíblia, livro de Lucas 18:16, quando Jesus diz “Deixai vir a mim as criancinhas”. Mas há duplo sentido, podendo ser traduzido como “Sofrem as criancinhas”.

A letra se refere a uma série de assassinatos de crianças ocorridos em Manchester nos anos 60. O caso ficou conhecido como Moors Murders, isto é, “Homicídios de Moor”. Esta última palavra é um termo geográfico sem correlato preciso na língua portuguesa, mas refere-se a um lugar como um planalto com prados ou um tipo de charneca britânica (moorland). É o local onde foram escondidos os corpos das vítimas.


Moor (ou Moorland) de Saddleworth, Manchester.















Das crianças, três nomes são citados: Lesley Ann “Lesley Ann with your pretty white beads”[1]; John “Oh, John, you'll never be a man. And you'll never see your home again”[2] e Edward “Edward, see those alluring lights. Tonight will be your very last night”[3]

O verso “Find me, find me”[4] refere-se a Keith Bennett cujo corpo nunca foi encontrado. A letra faz referência também à mãe desse menino quando diz: “I know my son is dead. I'll never rest my hands on his sacred head”[5].

Myra Hindley e Ian Brady receberam prisão perpétua pelos homicídios. Ela é citada na letra: “Hindley wakes and says: Oh, whatever he has done, I have done”[6].

A lírica de Morrissey assume uma voz fictícia representando as crianças quando ele canta: Estamos numa moor silenciosa e enevoada. Nós podemos estar mortos e podemos ter ido para sempre. Mas sempre estaremos bem perto, até o dia em que vocês morrerem. Este não é um passeio fácil. Nós os assombraremos quando vocês rirem. Sim, vocês poderiam dizer que formamos um time. Vocês podem até dormir, mas vocês nunca mais irão sonhar”. Esta fala também pode ser interpretada como vozes acusativas na consciência pesada do casal, ainda que a psicopatia seja caracterizada pela ausência de remorso.

De acordo com o site Songfacts, Morrissey escreveu essa letra após ler Beyond Belief: A Chronicle of Murder and its Detection (Inacreditável: uma crônica de assassinato e suas descobertas). O livro não tem título em português, então fiz aqui uma tradução livre.

Este é um vídeo musical de “Suffer little children” com slides sobre o triste caso:



Nota 1: este é um exemplo de lírica sobre um caso verídico. Morrissey fez esta letra em tributo às vítimas e seus familiares. Ele próprio era uma criança quando esses crimes horríveis aconteceram em Manchester, cidade onde ele cresceu.

Nota 2: fiz uma tradução contextualizada aos fatos e de alguns trechos mais difíceis, buscando explicar as ocorrências de duplo sentido e a falta de correlato na língua portuguesa. Os demais versos não carecem de explicação, bastando uma tradução literal simples, por isso não os mencionei aqui.

A letra completa e correta, na sua versão original, pode ser vista neste site:
http://www.azlyrics.com/lyrics/smiths/sufferlittlechildren.html




[1] Lesley Ann, com seu belo colar de miçangas brancas.
[2] Oh, John, você nunca se tornará um homem (adulto). E você jamais verá seu lar de novo.
[3] Edward, veja aquelas luzes atraentes. Hoje será sua última noite.
[4] Encontre-me, encontre-me.
[5] Eu sei que meu filho está morto. Eu nunca mais irei colocar minhas mãos sobre sua cabeça sagrada.
[6] Hindley acorda e diz: Oh, o que quer que ele tenha feito, eu também fiz.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Poesia e retórica

Eis um soneto em que se vê um belo exemplo de retórica, assemelhando-se a um texto dissertativo, mas em linguagem poética. Apresenta-se também como um texto metalinguístico, porque o argumento sustentado pelo autor é justamente a valorização da forma textual. Olavo Bilac defende a tese parnasiana segundo a qual o poeta deve prezar pelo valor estético de sua obra e que esta produzirá o efeito esperado pelo artista.


A Um Poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima , e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica, mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


No primeiro quarteto o autor introduz o tema e diz: “[O poeta] trabalha e teima, e lima e sofre, e sua”. No segundo quarteto ele recomenda e argumenta: “Mas que na forma se disfarce o emprego do esforço”, ou seja, que o poeta não expresse emoções, mas priorize a temperança “como em um templo grego” e, sobretudo, o valor formal [estético] do seu engenho [o fazer poético]. No primeiro terceto o autor reforça o argumento: “Não se mostre na fábrica o suplício do mestre”. Isto significa que a composição não deve enfatizar o sentimento do poeta, mas que o efeito “agrade sem lembrar os andaimes do edifício [i.e: que o resultado final seja belo sem lembrar o trabalho de composição]”. No terceto final, Bilac conclui dizendo que a Beleza [a estética] é a Verdade, inimiga do artifício [do sentimento produzido em poesia], e que a Beleza se encontra na simplicidade [de conteúdo].

Os poetas parnasianos defendiam a arte pela arte, o culto à forma, rejeitando as emoções exacerbadas e os conteúdos elaborados. Eles foram uma antítese ao sentimentalismo romântico e à poesia social dos realistas.


Nota pessoal
Como leitor, valorizo a subjetividade da poesia romântica e o engajamento político do Realismo, mas não posso negar que Bilac desenvolveu uma excelente argumentação capaz de defender a proposta artística parnasiana e de questionar os movimentos literários que a antecederam.

Observe que as minhas paráfrases sobre trechos citados não dão conta de explicar totalmente o que o autor diz em linguagem poética, porque esta forma de linguagem expressa um nível de raciocínio que a linguagem dissertativa não é capaz de atingir sem simplificar a riqueza semântica e formal do texto poético.


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Nise da Silveira nas telas de cinema

O filme "Nise: o coração da loucura" estreia nesta quinta, dia 21 de abril. A produção — estrelada por Glória Pires e dirigida por Roberto Berliner — ganhou o festival de cinema de Tóquio, no Japão.

Nise da Silveira foi pioneira da Psicologia Analítica no Brasil, mantendo correspondências com Carl Jung. 

Ela obteve reconhecimento internacional por suas ideias humanistas no tratamento de doentes mentais. 

Na década de 1930 foi detida pela posse de livros marxistas. Tendo convivido com Graciliano Ramos na prisão, tornou-se personagem de sua obra literária "Memórias do Cárcere".


Nise inovou ao estimular em seus pacientes a pintura de telas e o contato com animais como técnicas coterapêuticas de reabilitação.

Uma das obras publicadas por Nise.





















Cartaz do filme

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Letra de música traduzida

That Joke Isn't Funny Anymore
Composição de Morrissey e Johnny Marr (The Smiths)

Pare o carro no acostamento
Você deveria saber
A maré do tempo vai te sufocar
E a mim também

Quando você ri de pessoas
Que se sentem tão sozinhas
Que o único desejo delas é morrer
Eu lamento
Que isso não me faça sorrir
Eu gostaria de rir

Mas esta piada não tem mais graça
É muito perto de casa
É muito próxima ao osso
É muito perto de casa
É muito próxima ao osso
Muito mais do que você jamais saberá

Você os chuta quando eles caem
Você os chuta quando eles caem
Por que você tem que fazer isso?
Você os chuta quando eles caem
Você os chuta quando eles caem

Estava escuro como se eu dirigisse até chegar em casa
E nos bancos frios de couro
De repente me pareceu
Que eu simplesmente posso morrer
Com um sorriso no rosto afinal

Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
E agora está acontecendo na minha
Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
E agora está acontecendo na minha
Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
E agora está acontecendo na minha
Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
Agora está acontecendo na minha
Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
Agora está acontecendo na minha
Acontecendo na minha, acontecendo na minha, acontecendo na minha
Acontecendo na minha
Eu vi isto acontecer na vida de outras pessoas
Agora, agora, agora
Está acontecendo na minha
Acontecendo na minha
Agora...

Comentário
Tentei ser o mais literal possível, isto é, busquei fazer uma tradução ipsis litteris. Mas algumas expressões como "parar no acostamento" devem ser contextualizadas, assim como o valor semântico de algumas palavras como "casa" e "osso", que parecem ser metáforas. Não utilizei recursos de adaptação formal, ou seja, ignorei as rimas e outras figuras fonéticas, prezando pela letra no seu sentido bruto, cru (i.e.: literal).

terça-feira, 5 de abril de 2016

Rock underground (no mainstream)

Três bandas de rock alternativo que se popularizaram por serem antipop.

Joy Division (Manchester, Inglaterra: 1976 – 1980).
Gêneros: pós-punk, rock alternativo.
Surgiu como uma banda punk, inicialmente batizada Warsaw, mas assim que desacelerou o ritmo da bateria, assumiu a “morte” do punk e fez nascer o pós-punk, uma tendência que influenciaria fortemente o som das bandas de rock da década de 1980 em todo o mundo. As harmonias e letras eram um pouco mais sofisticadas que da moda punk, mas ainda assim era um som muito cru. Inovaram com o uso de teclados e sintetizadores. Lançaram apenas dois álbuns, Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980), alguns singles e coletâneas póstumas. Além desses discos, gravaram uma demo de punk-rock ainda sob o nome de Warsaw. Tanto pelo som quanto pelas letras, o Joy Division é uma banda melancólica, fato explicado pelas tragédias do vocalista Ian Curtis: a epilepsia e os terríveis efeitos colaterais que os medicamentos causavam, além de problemas conjugais. O filme “Control” (Preto e Branco, 2007) detalha com excelência o drama cinematográfico de todas as tristezas na vida desse vocalista e compositor. Quando a banda acabou em 1980, devido à morte de Curtis, os integrantes remanescentes fundaram o New Order. Então, outra moda surgiu: o synthpop, som construído a partir de sintetizadores, e o new wave, som dançante que marcou aquela década.

The Smiths (Manchester, Inglaterra: 1982 – 1987)
Gêneros: pós-punk, rock alternativo, indie rock (rock independente), jangle pop.
The Smiths são ainda hoje a banda mais associada ao gosto do roqueiro intimista, desajeitado e tímido, aquele tipo de pessoa que não vê lugar para si na sociedade, mas que sobrevive à margem, sendo ela mesma, aceitando seu desajuste social. Estereótipo ou não, as letras da banda não deixam dúvida sobre esse aspecto. Já na música, se diferenciaram muito de seus contemporâneos. O jangle pop era o som característico de bandas dos anos 60 como The Byrds, influenciadas por algumas canções dos Beatles como “A Hard Day’s Night”, “What You’re Doing” e “Ticket to Ride”. A marca desse tipo de harmonia é a guitarra dedilhada, valorizando os arpejos que não só acompanham, mas também complementam a melodia cantada. Essa foi uma das contribuições de Johnny Marr, guitarrista e compositor, ao som dos anos 80. Já o seu parceiro de composição renderia aqui um capítulo à parte. Morrissey, vocalista e letrista, é vegetariano. Nas suas apresentações em carreira solo, os locais de seus shows adaptam-se à sua exigência de não vender carne. Na época dos Smiths, proibia seus colegas de banda de serem fotografados comendo carne. Além disso, ele é muito avesso às instituições em geral. Diz o que lhe vem à cabeça. Fala mal da política e de tudo que lhe incomoda, cita nomes e não poupa nas críticas. Esta coleção de “excentricidades” típicas de um ser sensível lhe rendeu uma má fama entre as gravadoras. Mas tirando o lado “rebelde” do poeta, ele é muito meigo no trato com os fãs e com os animais. Certa vez, usou um aparelho auditivo num show em gesto de solidariedade a um fã surdo que se sentia excluído pelos colegas de escola. Morrissey é um ser ambíguo, conhecido e reconhecido tanto pela proximidade com os fãs, quanto pela sua língua solta e irrefreável, além de outras coisas que aos olhos da mídia (mainstream) são antipopulares, como sua assumida postura celibatária na época dos Smiths, contrariando o estereótipo do roqueiro libertino, e consequentemente, não rendendo holofotes (lucros) aos paparazzi que procuram sempre expor a intimidade dos artistas.

Nirvana (Seattle, EUA: 1987 –1994)
Gêneros: grunge, rock de garagem, rock alternativo.
Das três bandas citadas aqui, o Nirvana é a mais conhecida. Mesmo preferindo tocar em locais pequenos, acabou cedendo ao gosto da gravadora para tocar em grandes eventos, como o Hollywood Rock no Brasil. Na ocasião, Kurt Cobain não economizou no sarcasmo durante o evento patrocinado por uma marca de cigarro. Mesmo sendo fumante e recebendo seu cachê daquele patrocinador, ele expôs sua “rebeldia”, ainda que a contragosto dos fãs que berravam “Canta Smells Like Teen Spirit”. Mas no rock, o que atrai não é ser desajustado e rebelde? Então, por mais que o vocalista exprimisse sua revolta, tudo o que ele criticava acabava virando manchete. E isto, sua alma punk, contrária ao mainstream, somada à sua depressão crônica, não pôde suportar! O som do Nirvana é, logo, justificadamente agressivo, beirando ao caos e incitando à liberdade criativa nas várias bandas que viriam a surgir sob essa influência. Mas ao analisar com mais atenção, as melodias são tão excitantes quanto as do Led Zeppelin, Aerosmith e Beatles (influências que Kurt Cobain nunca negou). Essa linha melódica fica ainda mais evidente ao assistir ao “Acústico MTV em New York”, onde a banda apresenta um memorável show, talvez o melhor do gênero "Acústico MTV".

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Veja também a enquete deste mês no blog.

O artista (Oscar Wilde)

"O artista" por Oscar Wilde (1854 – 1900)

Uma noite veio do interior da sua alma o desejo de esculpir a estátua do "Prazer que dura um instante" e saiu pelo mundo em busca do bronze, porque só podia imaginar sua escultura em bronze.

Mas todo o bronze do mundo tinha desaparecido e em nenhuma parte do mundo podia encontrar-se bronze, salvo o da estátua da "Tristeza que dura para sempre".

Ora, essa imagem ele mesmo quem a esculpiu com suas próprias mãos. Havia modelado aquela estátua, colocando-a no túmulo do único ser a quem amara em sua vida. Então, na sepultura daqueles restos mortais que ele tanto havia amado, deixou aquela estátua erguida por ele para que fosse um sinal do amor imortal do homem e um símbolo da dor que dura para sempre. E no mundo inteiro não havia outro bronze senão o bronze daquela estátua.

E tomou a estátua que havia modelado, colocou-a em um grande forno e entregou-a ao fogo.

E com o bronze da estátua da "Tristeza que dura para sempre", modelou uma estátua do "Prazer que dura um instante"


(in "Complete Works" – poems in prose. Tradução nossa)
Obras Completas de Oscar Wilde  – poemas em prosa


Comentário:
É possível vislumbrar neste poema um paralelo com a antiga parábola budista da "semente de mostarda". Nesta, uma mãe carrega seu filhinho morto no colo procurando por algo que pudesse trazê-lo à vida. Após muita procura, alguém recomenda que ela ouça o sábio budista que habitava aquela região. Ela o encontra e pede-o uma cura. Ele diz que a cura é uma semente de mostarda que deve ser doada por uma família a quem a morte nunca tenha tocado. A mulher sai à caça dessa semente e em todas as portas em que batia, as pessoas se mostravam solidárias ao dar-lhe a semente, mas quando ela perguntava se alguém daquela casa já havia morrido, a resposta era sempre positiva. Em nenhuma família, em nenhuma casa, em nenhum lugar, a morte não havia tocado. Então a mulher voltou ao sábio budista e disse: "Enterrei meu filho no bosque, junto com minha dor, agora estou pronta para seguir-te".

A parábola budista fala do desapego das coisas mundanas, do ato de desapegar-se dos problemas que na vida não tem solução, e como esse desapego leva à superação da dor que é provocada pelos desejos do ego. Essa antiga filosofia oriental reapareceria cerca de 100 anos mais tarde na Grécia pós-Socrática sob os títulos de Cinismo e Estoicismo. Esta última corrente floresceu no Império Romano e séculos depois foi recuperada no período Barroco europeu que sustentou os dizeres "Memento mori". A filosofia estoica ensina o homem a aceitar com serenidade o seu destino tal qual este se apresenta. Essa escola que influenciou os primórdios do cristianismo tem Zenão (na Grécia) e Sêneca (em Roma) como seus representantes. Também podemos ver o estoicismo na poesia de Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa) que soma a essa filosofia o epicurismo. Já o Cinismo prega o desapego das coisas materiais. Foi fundado por Antístenes, discípulo de Sócrates, e levado ao extremo por Diógenes, que morava em um barril, na época de Alexandre, o Grande.

O poema de Wilde fala da superação de uma enorme tristeza provocada por uma grande perda, e de como um instante de felicidade ou a lembrança de um bom momento pode significar mais do que uma dor que se julga eterna.