sábado, 11 de julho de 2015

O Livro do desassossego



O “Livro do desassossego” é uma obra de Fernando Pessoa publicada postumamente sob os heterônimos de Bernardo Soares e/ou Vicente Guedes, dependendo da edição. Todo o livro funciona como uma grande catarse literária, é talvez a obra na qual podemos conhecer melhor a visão de mundo desse poeta português que é, sem dúvida, um dos maiores poetas de todos os tempos.

A seguir, alguns trechos e comentários da obra.


Da catarse literária:

Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

[...] porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

Escrevo, triste, no quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se, a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes [...]



No primeiro trecho vemos que o ato de escrever se realiza em si, sem que para isso haja a necessidade de nexo ou fatos a serem contados, a razão da escrita é apenas o ato de escrever: “narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida [...] se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer”. Também constata-se no trecho seguinte que para o escritor é tão válido o amor que ele dá ao seu tinteiro, no ato de escrever, quanto qualquer outra forma de amor ou de indiferença. No terceiro trecho destacado acima, vemos que o escritor assume a possibilidade de sua voz (seu pensamento) encarnar a essência de toda a humanidade.


Da natureza humana e do romantismo:

O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. [...]

A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma [...]





Do niilismo:

Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino.

[...] e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.

Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, [...]




Da náusea:

Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física [...]

Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar.



Fernando Pessoa morreu 3 anos antes da publicação do romance “A náusea” do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre. No romance de Sartre, a personagem protagonista sofre de uma aversão ao ser humano e sua condição existencial, sensação esta descrita como náusea. No trecho acima vemos que a náusea física no “Livro do desassossego” também é uma sensação de aversão à condição existencial humana: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há”.

Em “Poema em linha reta” Álvaro de Campos, outro heterônimo de Fernando Pessoa, se descreve como um ser “ridículo e absurdo”, que tem sido cômico até às serventes dos hotéis:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, [...]
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, [...]
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! [...]
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? [...]

Nesse poema, Álvaro de Campos é sarcástico ao dizer que todos os seus conhecidos “têm sido campeões em tudo” denunciando a hipocrisia, a dissimulação, a máscara social que encobre as fraquezas humanas inconfessáveis: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana/ estou farto de semideuses/ Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.

Da saudade (sentimento lusitano):

Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

O patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida?
O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.

No terceiro trecho há uma menção curiosa a um gato. Seria ele um gato que rondava pelas vizinhanças frequentadas por Fernando Pessoa? Além de esse gato aparecer ao seu semi-heterônimo em o “Livro do desassossego” ele também já foi visto por seu ortônimo, que inspirado pelo felino, lhe dedicou um poema o qual publiquei aqui neste blog já há algum tempo. Segue o link para o poema:

Uma das mais conhecidas frases de Fernando Pessoa está neste livro. É esta que destaco em negrito: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”.

Mas um dos mais belos trechos do livro é este a seguir, no qual o autor num momento raro em sua obra desconsidera a participação do destino e a determinação do meio para afirmar a importância do querer e a força do agir, a vontade própria como guia para o sucesso. É com esta citação que termino esta postagem:

Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não ficarem ali?”

Mas não poderia terminar sem agradecer aqui às minhas orientadas, Brenda e Elaine, que me proporcionaram a oportunidade e obrigatoriedade imensamente satisfatória e deleitosa de ler mais essa magnífica obra de Pessoa, talvez a sua única obra escrita em prosa.

Obs: As análises aqui sobre o “Livro do desassossego” são minhas, não constam no artigo delas, que escreveram com autonomia e fizeram suas próprias análises, tendo na minha orientação apenas um apoio técnico-normativo e moral (incentivador). Aprovadíssimas após a apresentação do artigo de conclusão de curso, espero em breve ver o trabalho delas publicado, pois fizeram análises dignas de se ter conhecimento. Parabéns, meninas!



O “Livro do desassossego” está disponível em domínio público para download.

Um comentário:

  1. “O artista precede o psicanalista" (Lacan)
    "O poeta precede o existencialista" (Renan)

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