Capítulo 1: Sócrates na prisão, um dia antes da execução da sentença de morte.
BG:
passos lentos no calabouço. Música do ápice para o fade out.
Xenofonte:
-
Mestre...
Sócrates:
-
Sim, Xenofonte.
-
Eu vos acordei?
-
Não, eu não estava
dormindo.
-
Há quanto tempo estais
assim, mergulhado em pensamentos?
- Não tenho noção de tempo aqui, contemplo as ideias atemporais, não penso sobre coisas inconstantes
como o tempo.
-
Não pensais preocupado
em vosso destino?
-
Digas-me, o que é o
destino?
- Não tenho segurança
para afirmar, mas vós que perguntais quereis ouvir uma resposta.... O destino
deve ser uma vontade acima da vontade dos homens. O destino dita a vida dos
homens.
-
Se achas mesmo isso,
não deverias pensar que estou preocupado.
-
Por que, mestre?
- Se o destino é o que me
dizes, ele se encarrega de tudo. Se ele está acima da vontade dos homens, de
nada adiantaria preocupar-me, pois não posso mudá-lo. Logo, devo aceitá-lo.
-
Confesso, mestre, não
sei o que é o destino. Esclarecei-me, então.
- Da mesma forma como nós
buscamos responder a questões que nossos antecessores levantaram, nossos
sucessores tentarão responder a essa pergunta. Logo, isso é
questão de tempo.
-
Platão:
- Mestre, o vosso tempo
está se esgotando. Deveis fugir. Vossos discípulos não vos abandonareis, todos
nós já preparamos um esconderijo com água e comida, longe de Atenas. Deveis
fugir hoje à noite, amanhã poderá ser irremediável.
-
Se eu fugisse, eu não
teria orgulho de mim mesmo e tampouco vós o teríeis. Não seria, após fugir,
amigo da sabedoria tendo eu abdicado das minhas próprias ideias. Minhas ações não
seriam merecedoras de minhas palavras. Platão, tu és meu discípulo mais
esforçado. Não te lembreis das palavras que eu disse em meu julgamento?
-
Sim mestre, lembro-me
bem.
- Então fico feliz de
saber que não me decepcionai. Após a minha morte, viverei na lembrança de meus
discípulos.
- Mas mestre, não quero vos
retrucar, sei que estais seguro de que existe uma alma imortal e que vivereis
para sempre. Sei que vos anseias em conversar com outras almas de sábios que
deixaram este mundo de sombras. Porém, não vos preocupais com vossa mulher e
filho?
- Sim, Platão, essa é mais
uma razão para não fugir à minha sentença. Se fugir, não poderei retornar à
minha mulher e meu filho, pois na companhia deles me encontrariam, e eu os
exporia ao perigo. Tampouco poderia eu fazer da vida de minha família uma aventura,
obrigando-os a fugir para sempre. A responsabilidade do que eu disse e pensei
deve recair apenas sobre mim. Quero poupar meu filho, pois se eu estiver
errado, e não existir uma alma imortal; e a morte for um sono do qual não se
acorda e não se sonha, eu pelo menos viverei, após minha morte, na lembrança de
meu filho, que é minha carne e meu sangue. E meu filho viverá na lembrança e na
carne de seu filho. Essa é uma forma de viver eternamente.... Já não sou jovem
como vós, meus discípulos. Se fugisse, quanto tempo mais minha carne duraria
neste mundo? Mais cedo ou mais tarde eu morreria, se não velho e doente, morto
por alguém que se sente ofendido comigo. Não poderia viver fugindo disso. Sinto
pela minha mulher, que não poderá me abraçar novamente neste mundo. Mas espero
um dia que, se houver um outro mundo; ela, meu filho e todos vós se encontrarão
comigo lá.
Epicuro:
-
Mestre, qual a razão de
vivermos se depois morremos. Não deveríamos morrer logo, e assim apreciar o
outro mundo desde já?
-
Por Zeus, não Epicuro!
Não deveis negar a importância do mundo material. Aqui estás por um motivo,
deves olhar para dentro de ti mesmo para entender esse motivo. Assim te
tornareis um homem virtuoso.
Zenão:
-
Mestre, não entendo
esta calma com que vós vedes a proximidade da morte.
- Zenão, não considereis
isso um feito temerário. Não seria racional me arriscar numa causa a qual minha
própria razão descrê. Se faço o que faço é porque acredito em minhas ideias. E
não importa a época, a razão é atemporal, sendo assim, um dia entenderás
também. Se negares tua condição, humana sofrerás. Se aceitas com sabedoria que a
morte e sofrimento são condições humanas, poderás mudar sua condição de
sofrimento.
-
Antístenes:
- Mestre, ainda assim,
não me convenci. Não temeis a dor, mas as vossas necessidades serão satisfeitas
após aceitares vosso destino?
-
Antístenes, meu amigo,
os atenienses precisam de muitos luxos para viver. Na verdade eles ainda
ignoram que não necessitam nem da metade da metade do que possuem. Tudo que
necessito no momento é cumprir minha missão neste mundo, e ela será concluída
após minha sentença, quando não abdicarei da razão de que há uma alma imortal
em todos nós. Assim provarei a convicção das minhas ideias para vós, e assim
poderão continuar, após minha morte, a buscar o próprio conhecimento que vós
tendes dentro de vós. Não sou nenhum sábio, não vim ensinar uma doutrina, não
poderia, pois nada sei. Só vim vos ajudar a vos tornardes conscientes da vossa
própria ignorância, a desfazerdes dos vossos preconceitos e presunções que vós
tendes. Vim como uma parteira, vos auxiliar a vós mesmos a darem à luz a vossas
próprias novas ideias. Saiam das sombras da ignorância. Conheceis a vós mesmos
e sereis virtuosos. Essa era a minha missão.
Personagens:
Sócrates (469 a.C. a 399 a.C). – filósofo ateniense, criador da maiêutica, pai da filosofia humana ocidental. Célebre pelas frases "Só sei que nada sei" e "Conhece-te a ti mesmo".
Xenofonte – Discípulo de Sócrates e relator de seus feitos.
Platão – Discípulo de Sócrates. Autor da "Apologia
de Sócrates", livro que descreve o julgamento e autodefesa de seu mestre. Também escreveu o "Fédon", livro que trata da imortalidade da alma. Platão foi um filósofo
idealista e criador da “alegoria da caverna”.
Epicuro – Discípulo de Sócrates. Fundador da
filosofia dos epicuristas. Estes reuniam-se num jardim. Eles valorizam os
prazeres materiais (experiência sensitiva) e negavam a imortalidade da alma com base no atomismo de Demócrito.
Zenão – Discípulo de Sócrates. Fundador da filosofia
dos estoicos. Estes eram caracterizados pela indiferença ao exterior
(tranquilidade estoica) e pela razão atemporal.
Antístenes – Discípulo de Sócrates. Fundador da
filosofia cínica. Para os cínicos a verdadeira felicidade não depende de fatores
externos como o luxo.
Renan, 2005.
Obs: esta é uma ficção criada por mim com o objetivo de ilustrar como Sócrates influenciou correntes variadas de pensamento filosófico. A inspiração veio um pouco de "Fédon", mas obviamente com mudanças e personagens acrescidos.