O “Livro do desassossego” é uma
obra de Fernando Pessoa publicada postumamente sob os heterônimos de Bernardo
Soares e/ou Vicente Guedes, dependendo da edição. Todo o livro funciona como
uma grande catarse literária, é talvez a obra na qual podemos conhecer melhor a
visão de mundo desse poeta português que é, sem dúvida, um dos maiores poetas
de todos os tempos.
A seguir, alguns trechos e
comentários da obra.
Da catarse literária:
Nestas impressões sem
nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem
fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada
digo, é que nada tenho que dizer.
[...] porque nada
valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo
ao pequeno aspecto do meu tinteiro
como à grande indiferença das estrelas.
Escrevo,
triste, no quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre
serei. E penso se, a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a
substância de milhares de vozes [...]
No primeiro trecho vemos que o
ato de escrever se realiza em si, sem que para isso haja a necessidade de nexo
ou fatos a serem contados, a razão da escrita é apenas o ato de escrever:
“narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem
vida [...] se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer”. Também constata-se no
trecho seguinte que para o escritor é tão válido o amor que ele dá ao seu
tinteiro, no ato de escrever, quanto qualquer outra forma de amor ou de
indiferença. No terceiro trecho destacado acima, vemos que o escritor assume a
possibilidade de sua voz (seu pensamento) encarnar a essência de toda a
humanidade.
Da natureza humana e do
romantismo:
O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de
todos os homens vulgares, e o romantismo
não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. [...]
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade
interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus
poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração
exterior do que há mais dentro na alma [...]
Do niilismo:
Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas
crianças do Destino.
[...] e não têm
consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns
inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos,
outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo
sexo que não existe.
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não
sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria
uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua
verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na
alma, [...]
Da náusea:
Guardo do pouco tempo
que me estagnei nesse exílio da esperteza mental uma recordação de bons
momentos de graça franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns
perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serventes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física [...]
Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que
é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como
se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar.
Fernando Pessoa morreu 3 anos antes da publicação do
romance “A náusea” do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre. No
romance de Sartre, a personagem protagonista sofre de uma aversão ao ser humano
e sua condição existencial, sensação esta descrita como náusea. No trecho acima vemos que a náusea física no “Livro do desassossego” também é uma sensação de
aversão à condição existencial humana: “Tenho a náusea física da humanidade
vulgar, que é, aliás, a única que há”.
Em “Poema em linha reta” Álvaro de Campos, outro
heterônimo de Fernando Pessoa, se descreve como um ser “ridículo e absurdo”,
que tem sido cômico até às serventes
dos hotéis:
Nunca conheci
quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas
vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, [...]
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, [...]
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
[...]
Quem me dera
ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! [...]
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! [...]
Arre, estou farto
de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu
que é vil e errôneo nesta terra? [...]
Nesse poema, Álvaro de Campos é sarcástico ao
dizer que todos os seus conhecidos “têm sido campeões em tudo” denunciando a
hipocrisia, a dissimulação, a máscara social que encobre as fraquezas humanas
inconfessáveis: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana/ estou farto de
semideuses/ Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.
Da saudade (sentimento lusitano):
Saudades!
Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma
doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas
habituais — se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o
símbolo de toda a vida.
O patrão Vasques. Que
me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num
tempo diurno da minha vida?
O
patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos,
o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte
da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que,
por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o
separar-me deles era uma metade e semelhança da morte.
No terceiro trecho há uma menção
curiosa a um gato. Seria ele um gato
que rondava pelas vizinhanças frequentadas por Fernando Pessoa? Além de esse
gato aparecer ao seu semi-heterônimo em o “Livro do desassossego” ele também já
foi visto por seu ortônimo, que inspirado pelo felino, lhe dedicou um poema o
qual publiquei aqui neste blog já há algum tempo. Segue o link para o poema:
Uma das mais conhecidas frases de Fernando Pessoa está
neste livro. É esta que destaco em negrito: “Não tenho sentimento nenhum
político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa”.
Mas um dos mais belos trechos do livro é este a seguir, no
qual o autor num momento raro em sua obra desconsidera a participação do
destino e a determinação do meio para afirmar a importância do querer e a força
do agir, a vontade própria como guia para o sucesso. É com esta citação que
termino esta postagem:
“Agir, eis a
inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que
for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de
palácio tem qualquer terra larga, mas
onde estará o palácio se o não ficarem ali?”
Mas não poderia terminar sem
agradecer aqui às minhas orientadas, Brenda e Elaine, que me proporcionaram a oportunidade
e obrigatoriedade imensamente satisfatória e deleitosa de ler mais essa magnífica
obra de Pessoa, talvez a sua única obra escrita em prosa.
Obs: As análises aqui sobre o “Livro
do desassossego” são minhas, não constam no artigo delas, que escreveram com
autonomia e fizeram suas próprias análises, tendo na minha orientação apenas um
apoio técnico-normativo e moral (incentivador). Aprovadíssimas após a
apresentação do artigo de conclusão de curso, espero em breve ver o trabalho
delas publicado, pois fizeram análises dignas de se ter conhecimento. Parabéns, meninas!
O “Livro do desassossego” está disponível em domínio público
para download.
“O artista precede o psicanalista" (Lacan)
ResponderExcluir"O poeta precede o existencialista" (Renan)