segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O estilo de Morrissey e The Smiths

Steven Patrick Morrissey foi o vocalista que junto ao guitarrista Johnny Marr compôs todas as músicas da banda inglesa The Smiths (formada em Manchester). O grupo esteve ativo entre 1982 e 1987, depois de desfeito, Morrissey lançou-se em carreira solo e assim permanece até hoje, tendo realizado shows no Brasil em novembro de 2015. Ele rejeita qualquer possibilidade de reunir o seu antigo grupo, mas tanto ele quanto Johnny Marr, também em carreira solo, cantam as músicas dos Smiths em seus shows, agregando material próprio.

Principais características de Morrissey como letrista:

- Sarcasmo: letras cheias de humor mordaz que dão a falsa impressão de serem depressivas ou violentas, quando são, na maioria, apenas irônicas, mas de uma ironia cáustica.

- Vocabulário incomum: faz questão de palavras que não se usam no cotidiano da língua inglesa. Também, às vezes, construções sintáticas ou semânticas pouco usuais, como por exemplo, a palavra “handsome” que para ele é sem gênero, como afirmou uma vez. Gosta de palavras “antigas” e justifica isso quando canta: “Veja como as palavras tão antigas quanto o pecado se encaixam em mim como uma luva” (música: The hand that rocks the cradle).

- Discurso sem gênero: ele prefere fazer letras sem especificações de gênero para que o público, masculino e feminino, se interesse e se identifique. Mas isso não é uma regra.

- Sem rimas: nem sempre faz questão de rimar os finais das palavras, demonstra mais preocupação com o conteúdo do que com a forma.

- Discurso direto: ainda que use metáforas, não é muito simbólico nem fantasioso. Sua poesia “toca na ferida”; é provocante, causa impacto ao ponto de gerar admiração ou rejeição imediata. É uma poesia corajosa, desnudada, sem receios de julgamento, simples e feroz, sentimental e indiferente, de estilo ousado e marcante.

- Temas recorrentes nas letras dos Smiths: as relações amorosas, a timidez, a morte (às vezes, desejando-a), a política (em especial a crítica à monarquia inglesa), a violência (na escola, no futebol, no cotidiano; contra os animais, contra a mulher etc).

Sua vida pessoal influencia grandemente o conteúdo das letras. Algumas delas remetem a experiências traumáticas vividas no período escolar e infância, exemplos são “The headmaster ritual” e “Barbarism begins at home”. Morrissey é vegetariano e defensor dos animais (Meat is Murder é um dos discos mais célebres dos Smiths). Também é um crítico ácido da família real inglesa e de outras personalidades políticas (The Queen is Dead é outro álbum célebre da banda). Sua sexualidade é especulada até hoje (Morrissey atualmente tem 56 anos), mas tudo o que se lê ou se ouve sobre esse assunto ainda provoca mais dúvidas. Por exemplo, ele já se declarou celibatário nos anos 80 e em 2013 afirmou: “sou humanossexual – sinto atração por seres humanos, mas não muitos”. Tudo parece misterioso e incomum em sua vida particular, mas sua poesia gera uma notável identificação ou admiração nas pessoas. Os shows de Morrissey ficaram célebres devido ao número incrível de pessoas que constantemente invadem o palco para tocá-lo. Seu nome é cantado em coro pelo público como os hinos de times ingleses de futebol.

Principais influências de Morrissey
Literária: o escritor irlandês Oscar Wilde (Morrissey é um leitor ávido de literatura);
Musical: a banda de punk rock New York Dolls

Principais influenciados
A Legião Urbana, grupo de rock brasileiro surgido na década de 1980. É possível notar claramente a influência de Johnny Marr na guitarra de Dado Villa-Lobos, mais ainda a influência de Morrissey no estilo de Renato Russo. Todavia, o fundador da Legião Urbana soube criar um estilo próprio a partir de várias influências (desde os Beatles até o punk rock) e foi brilhante como compositor e vocalista.

Obs: Vale dizer que o estilo de Marr na guitarra Rickenbacker foi influenciado pelo som dos anos 60, em especial da banda americana The Byrds e das guitarras de George Harrison no início dos Beatles. Sua batida às vezes lembra o Creedence Clearwater Revival. No lugar das distorções pesadas, Marr optou por ser um guitarrista sutil, agregando sentimento e energia às letras de Morrissey.

Outros fãs conhecidos dos Smiths: o cantor e compositor Cazuza (falecido em 1990), Noel Gallangher (outro famoso beatlemaníaco, guitarrista e compositor da banda inglesa Oasis), Radiohead (outra banda inglesa), The Cranberries (banda irlandesa), Smashing Pumpkins (banda americana), The Pretenders (banda inglesa), Bono Vox (vocalista do U2), a escritora J.K. Rowling (notória autora dos livros de Harry Potter), Belle & Sebastian (banda escocesa), entre outros.

Por que "The Smiths"? Segundo o próprio vocalista, o nome da banda foi definido assim porque “Smiths é um sobrenome comum (na Inglaterra) e é hora das pessoas comuns mostrarem a sua cara”. Ironicamente, as capas dos discos nunca traziam fotos de pessoas comuns ou da própria banda, mas sempre celebridades do cinema como James Dean, Elvis Presley entre outros atores e atrizes do gosto de Morrissey.


Citações de trechos de suas letras com The Smiths:

“Uma cama de casal e um(a) amante vigoroso(a) são as riquezas do pobre”
(I want the one I can’t have)

"Então eu encontro você nos portões do cemitério. Keats e Yeats estão do seu lado, enquanto Wilde está do meu... Gravemente lemos as lápides. Todas estas pessoas, todas estas vidas, onde estão agora?... Você diz: "Aqui três vezes o sol prestou saudação à aurora" E você alega que estas palavras são suas, mas eu sou muito instruído e já as ouvi uma centena de vezes... Se você tem que escrever prosa/poesia as palavras usadas devem ser as suas próprias. Não plagie ou pegue emprestado, porque há sempre alguém em algum lugar que é narigudo e sabe" (Cemetery Gates)

"Quando você ri de pessoas que se sentem tão sozinhas que o único desejo delas é morrer, eu lamento que isso não me faz sorrir. Eu queria poder rir, mas essa piada perdeu a graça” 
(That joke isn't funny anymore)

“Cante para eu dormir e depois me deixe sozinho. Não tente me acordar de manhã, porque eu terei partido. Não se sinta mal por mim” (Asleep)

“E se um ônibus de dois andares colidisse em nós: morrer ao seu lado, que jeito divino de morrer!” (There’s a light that never goes out)

“Eu gostaria de sair hoje à noite, mas não tenho um trapo para vestir. E aquele homem disse: - é horrível que alguém tão bonito(a) ligue para isso” (This charming man)

“Bons tempos, só pra variar. Entenda, a sorte que eu venho tendo pode fazer um homem bom se tornar mau” (Please Please Please let me get what I want)

“E ela disse: - Eu fumo porque estou ansiando por uma morte precoce e eu preciso me agarrar a algo” (What she said)

“Eu sei que acabou e na verdade nunca começou, mas em meu coração era tão real. E você até falou comigo e disse: - Se você é tão engraçado, então por que está sozinho à noite? E se você é tão esperto, por que está sozinho à noite? E se você é tão divertido, por que está sozinho à noite? E se você é tão bonito, então por que dorme sozinho hoje à noite? - Eu sei, porque essa noite é exatamente como todas as outras noites” (I know it’s over)

“Noite passada eu sonhei que alguém me amava. Nenhuma esperança, nenhum dano, apenas um alarme falso” (Last night I dreamt that somebody loved me)

“Eu sou o filho e o herdeiro de uma timidez que é criminosamente vulgar”
(How soon is now?)

“A timidez é legal, mas a timidez pode te impedir de fazer todas as coisas que você gostaria de fazer na vida. Ser reservado é legal, mas ser reservado pode te impedir de fazer todas as coisas que você gostaria de fazer na vida” (Ask)

“Você tinha que invadir furtivamente meu quarto apenas para ler o meu diário, só para ver, só para ver todas as coisas que você sabia que eu tinha escrito sobre você” (Suedehead)

* Todas letras citadas são de canções dos Smiths, exceto Suedehead que é do álbum de estreia de Morrissey em carreira solo (1988).

Vistas assim, fora de contexto, as letras expressam muita tristeza, revolta e sentimentos depressivos/violentos, mas, como eu disse, há também uma ironia aí. Isso fica mais claro em canções como “Sweet and tender Hooligan” e “Bigmouth strikes again”. Na primeira ele critica os hooligans (torcedores violentos) e na segunda denuncia o homem que bate em mulher, mas para fazer isso de modo majestosamente poético, ele ironicamente assume um eu lírico que toma o ponto de vista de quem está sendo criticado/denunciado e assim expõe as fraquezas e contradições de seus alvos de crítica. Em outras canções com teor mais autobiográfico o compositor consegue transpor sentimentos e imagens comuns para envolver o público na sua poesia, fazendo o sentimento de um se assemelhar ao sentimento de todos. Não só pelas letras, mas Morrissey também cativa o público tocando-o na mão, chamando ao palco, dançando loucamente, fazendo caretas e interpretando a canção com o sentimento que tiver disponível no momento da apresentação.

Outros exemplos de sua ironia são vistas nas canções “Shoplifters of the world” e “Panic”. Na primeira ele modifica a célebre expressão marxista “Trabalhadores do mundo, uni-vos” substituindo “trabalhadores” por “ladrões de loja” (como metáfora). E em “Panic” ele se utiliza de uma expressão idiomática inglesa: hang the DJ, isto é, “enforque o DJ, porque a música que eles tocam não diz nada sobre a minha vida” (na verdade, mais do que uma crítica à discoteca, denuncia o seu próprio desajuste social, o que o leva ao pânico/fobia social numa época conturbada – Inglaterra, anos 80).

Em suma, o eu lírico/poético de Morrissey deve ser interpretado com cuidado, melhor ainda, compreendido antes de qualquer conclusão. Quanto ao seu eu de carne e osso, este parece que morrerá como viveu: misterioso, recluso, polêmico, mas inofensivo até onde se sabe.

Ainda sobre The Smiths, vale destacar a óbvia genialidade e criatividade do guitarrista para bolar bases musicais, a perícia do baixista ao fazer seu instrumento se destacar em quase todas as faixas, dando-as um brilho refinado, e o entrosamento do baterista ao adaptar-se a qualquer estilo, mostrando versatilidade e energia rítmica.

Morrissey – voz e composições (melodia e letra)
Johnny Marr – guitarra e composições (base musical, harmonia etc)
Andy Rourke – baixo
Mike Joyce – bateria

Apesar de todas as composições dos Smiths serem atribuídas a Morrissey e Marr em parceria, Rourke e Joyce contribuíram valorosamente para os arranjos musicais na parte do baixo e da bateria. É evidente que Morrissey era o gênio por traz das letras e carisma da banda, enquanto Marr o gênio musical, um guitarrista que não se preocupava com longos solos, mas seus arpejos preenchiam todos os espaços possíveis soando como um quarteto de cordas, valorizando a voz grave de Morrissey. Mas não seria a mesma coisa sem o baixo de Rourke, que não se limitava em marcar a nota do acorde nem a fazer riffs (imitando a guitarra), mas procurava preencher espaços onde a guitarra não poderia estar, enquanto a bateria de Joyce com seu sonoro bumbo se encaixava perfeitamente a tudo. Estes últimos elementos fizeram toda a diferença no som da banda.

The Smiths foi um daqueles poucos grupos que não se encaixava numa tendência musical, eles arriscavam e criavam suas próprias. Seu estilo é único e facilmente reconhecível. Embora identificado como rock independente, alternativo, pós-punk, não soava como a nenhuma outra banda da época.

Da esq para dir: Rourke, Morrissey, Joyce e Marr (The Smiths)















A paixão de Morrissey por animais














Cazuza - fã dos Smiths