I
Acordei ainda com o gosto de carne na boca.
Não dormi sem escovar os dentes,
nem havia comido carne na noite passada.
Sonhei que era um robusto bárbaro.
Acabara de matar meu almoço: um pequeno cervo.
Estava retirando a pele do animal, meu corpo empapado de sangue,
quando prestes a dar a primeira mordida na deliciosa carne,
Despertei.
Não era exatamente eu naquele sonho.
Não teria talvez a coragem para matar um animal tão gracioso,
protegido por leis e ainda homenageado com um desenho da Disney.
Mas vi a cena como se estivesse lá
na mente daquela bárbaro faminto.
Ainda posso recordar as histórias dos anciões
contadas sempre no fim da tarde para um auditório de meninos silvícolas.
Por alguma razão
aquelas histórias estavam fossilizadas naquela mente primitiva.
II
À tarde, chequei meus e-mails. A maioria era spam.
Num deles uma propaganda aludia a desenhos rupestres.
Já havia visto alguns desses.... (talvez feitos pelo meu avatar do sonho)
...em cavernas que para mim só existiam em livros de Arte.
A propaganda lembrou-me do mundo que eu visitara à noite.
Pensei comigo “aqueles bárbaros não mentiram”.
A vida lá era tão simples e imediata quanto aquelas gravuras nas cavernas.
Amanhecia, levantava. Anoitecia, dormia.
Caçava para viver, dividia a comida com velhos, mulheres e crianças.
Mas também havia terror.
Os homens resolviam suas diferenças com paus e pedras,
não era como hoje que há leis e processos.
A humilhação pública provou ser uma arma bem mais eficaz que o tacape.
Ferir a reputação de um homem pelo intermédio de terceiros é muito mais civilizado que aquela hostilidade cara a cara.
Despertei desse flashback e voltei meus olhos para o desenho pitoresco que alegrava o meu monitor.
Aquela propaganda piscava, brilhava, sem falar na complexidade daquele design.
Sem dúvida eu estava diante de uma arte muito apurada!
Uma obra-prima do século XXI.
Senti falta de uma arte mais vistosa naquela minha viagem fantástica. A cena retratada pelo homem primitivo parecia o rascunho de um storyboard. O traço (feito à mão) não era elegante e o tom pastel não era comparável à diversidade de cores dos desenhos atuais.
Estando por uma única vez na mente do homem primitivo, só o que pude entender é que aquele desenho para ele era mágico.
Lá, a figura não representava alguma coisa, mas era a própria coisa materializada.
O homem que a pintara não era um artista. Para os olhos da tribo ele era um feiticeiro.
III
À noitinha meus olhos perseguiam por vários canais de TV a cabo,
sem me fixar em nenhum deles, passei por um documentário sobre a savana.
Assim que vi uma cena de caça, a mente primitiva de meu avatar invadiu minha alma.
Entendia agora o que é lutar pela sobrevivência,
ter os olhos fixos na presa e mais nada na mente.
Medo? Só sentia fome.
Lembro-me do momento da caça, mas a hora mais gloriosa era o retorno.
A tribo toda cantava e dançava sob as estrelas
e as fagulhas da fogueira, como vaga-lumes, acompanhavam os passos da dança.
Nessa hora, a mente primitiva ficou confusa, como uma TV com chuviscos.
Nós não pensávamos mais, só sentíamos o som dos passos, os gritos e o êxtase vitorioso de mais um dia que se findava. Sentia as bênçãos de Deus sobre nós.
Naquele mundo não havia moléstia.
Quando o mal se apoderava de um corpo, o curandeiro da tribo aliviava a dor do moribundo. Mas não me lembro de ver algum homem morrer nas mãos daquele velho.
Aqueles que se recobravam da moléstia agradeciam a Deus com oferendas.
O curandeiro nada recebia, nem mesmo um obrigado.
Dizia-se que ele não era curandeiro e que ele mesmo se considerava um servo da tribo.
“Os homens estão nas mãos de Deus” – dizia o velho em linguagem rudimentar.
Aquele que atentamente acompanha com os olhos a minha narrativa pode se perguntar como eu vivi tudo isso em apenas uma noite.
É que o tempo dos sonhos é mais alongado que o tempo real.
IV
Fui preparar meu jantar.
Não me veio nenhum sentimento surreal,
Apenas a emoção de ver (pelo vidro)
o queijo derretendo lentamente.
Ademais,
a Pós-Modernidade não é mais que
lasanha de microondas.